segunda-feira, 4 de julho de 2011

Autópsia

Já deve ter sofrido por amor, já deve ter se ferido no início, quando era um desconhecido pra mim. É sempre mais reconfortante pensar que seria melhor nem nascer, mas uma vez nascendo, o sofrimento afetivo é o pedágio da vida. Todos passam por isso. Morremos a cada segundo, como uma pilha de pétalas sendo atravessadas por uma agulha negra.


Mas você já sentiu-se como um rato de laboratório? Um bichinho fofo, peludo e pequeno à mercê dos experimentos mais dementes e excessivos de alguém? Como, por exemplo, ter seu minúsculo coraçãozinho arrancado pra fora do corpo e vê-lo pulsando na mão de unhas sujas de uma pessoa babando de insensatez sem o menor pudor de deixá-lo cair?


Eu não sabia que era possível naufragar em salivas, do contrário teria tomado mais precauções com suas frases e atos contradizentes. O primeiro marcando minha existência poética, e o segundo desmarcando esperados encontros como quem descarta comida azeda.


Eu joguei sim, desconversei, fiz cena. É que não queria você me rejeitando de cara. Mas se dei a entender que eu não passava de um brinquedo, desculpa, me expressei errado. Agora me resta ouvir as canções que jurei ódio e não posso passar as faixas românticas, pois perdi o manual de instruções do aparelho de som no meu ouvido interno. Na fossa, não conte com seus amigos, ouça música, elas são o melhor ombro.


Você acha bonito e divertido fazer todo mundo de idiota? Sério, você se orgulha de ser assim? Pra você é muito fácil apenas não atender telefonemas enquanto floresce em cada uma de suas presas a muda do ressentimento e humilhação, que lá na frente produzirá as maiores sombras frígidas. Você nem ficará sabendo. Permaneceremos jogadas no lixo que é sua memória.


É fácil seguir em frente pra quem não tem razões pra olhar pra trás, pra quem não tem visão periférica ou mesmo o costume de olhar os lados alheios. E não venha chamar isso de escudo. Tornar-se uma pessoa sórdida pra se defender do mundo é como escapar de um assassino no topo de um prédio. E depois jogar-se de lá.


Mas tanto faz. São apenas anotações de quem deu o ego a abater e precisa lembrar o momento exato que o pulso começa a latejar. Foi só mais um alguém que se aproximou ofertando uma maçã do amor numa mão com a foice da paixão na outra. Quantos pedaços você precisa juntar, quando alguém esquarteja um meio-amor? Não sei, não quero fazer a conta, vou guardar forças pra pagá-la em todas aquelas prestações de resguardo, descrença e reflexão, quando a gente faz uma espécie de autópsia sentimental - vivo e sem anestesia.


Pelo menos até a anunciação do próximo ciclo de vida (e morte). É assim, tudo que não gera felicidade, degerenera, morre na impermanência. Nem pra sempre, nem nunca mais.







(Gabito Nunes)